ponto

troquei de folhas, apontei as pontas de meus lápis, mas não adiantou. Tentei esboçar no papel o que estive desenhando em minha mente. Transpor pensamentos para mostrar ao mundo o que se passava aqui comigo, em vão. Afinal, como seria o desenho de uma mente cheia apenas da mesma coisa?

Esbocei o máximo que pude, mas não passou de um ponto. Um ponto! Algo que não pode ser mensurado, medido ou sequer explicado. Um não-limite em minha mente. Foi então que me dei conta do quanto estava correta a minha representação.

Em minha mente vejo linha tênues que se juntam para formar algo que não tem forma, nem dimensão. Só vejo este mesmo reflexo cada vez que fecho os olhos, e fixo minha mente nisso tudo, pois não há nada mais, só isto. Um Espírito, algo indomável que por mais que eu tente, nunca entenderei. Este ponto, em minha mente só tem o teu reflexo. E volto sempre a fechar os olhos, somente para ver você.

capítulo primeiro: passagens somente de ida.

Era verão em nosso hemisfério. Claro que eu prefiro o inverno, é muito mais tranquilo. O frio me enche de preguiça. Tenho vontade apenas de ficar enrolado em meu cobertor, sentado no sofá em baixo da janela e ouvir música ou apenas esperar o tempo passar. Mas o Verão já estava por aqui, tudo se tornava mais corriqueiro e a minha vida prática abaixo da janela olhando o lago se transformava de uma forma radical.

Era no verão que minhas cabanas se enchiam de turistas. Alguns vinham para passear, outros vinham para conhecer o lugar todo e também explorar algumas áreas além. Talvez essa tivesse sido a melhor idéia que eu já tive, não era necessário trabalhar o ano todo pelo que eu lucrava todo o verão. Afinal aquela terra herdada por mim de meu avô era antes um fardo, até que me ocorreu transformá-la em um camping. Eu mesmo construi as cabanas, tempo sempre me sobrou. Mal o verão começava e as cabanas logo se enchiam, era como se abrisse uma jaula com milhões de pombas sedentas por planar livres no ar novamente, e meu verão se tornava corrido, mais uma vez.

Uma nova rotina se criava, eu tinha de receber meus hóspedes, apresentá-los à equipe que cuidava das coisas por aqui, e levá-los até a cabana reservada, era simples e fácil se não fosse por um pequeno fato incomodativo: eu odiava estar na companhia de outras pessoas. Passava o ano todo lá, apenas eu, Drake, Taila e Lia. Drake era o labrador mais bonito que eu já vira em toda minha vida, meu cão mais velho e talvez mais amado. Taila era uma linda dalmata, quando encontrei a pobrezinha ela havia sido atropelada na estrada que leva até "meus domínios", levei-a para casa e a tratei, meu conhecimento veterinário era pequeno, porém serviu para hoje ela ser essa cadela ágil, esperta e saudável. Lia eu nunca via, era estranho o quanto uma gata negra poderia se dar tão bem no meio de um lugar como aquele, ela aparecia nos invernos e geralmente ficava deitada do lado de fora atraz da lareira. Embora os cachorros se implicassem um pouco com ela, a convivência entres os três era pacífica. Minhas únicas conpanhias confiáveis. Pessoas não eram confiáveis, nem mesmo a família. 

Enfim, a primeira família havia chegado e lá estava eu denovo fingindo ser uma pessoa receptiva. Era um homem gordo, careca e bigodudo a quem um menino ruivo que não tinha mais do que onze anos estava chamando de pai, e acompanhando os dois mais duas mulheres, uma senhora idosa de cabelos curtos e loiros e uma outra de meia-idade que seria bonita se não fosse o excesso de maquiagem e as perceptíveis falhas de uma possível reconstituição facial, provavelmente colocadas ali por um acidente de carro. Outra coisa que nunca consegui frear, eu era perfeccionista em vários detalhes, e muitas vezes estava certo. Era bater o olho em uma pessoa e percebia características que as outras dificilmente veriam, e isso ocorria com mais frequência e exatidão quando eu estava em "meus domínios". Típica família em que o marido havia programado as férias com a mulher e o filho e tvce de trazer a sogra junto, pela cara de animado que o careca chamado Silvio fazia, eu havia acertado novamente. Levei-os até a cabana escolhida e a última coisa que vi da colina a uns vinte metros da casa, foi o guri ruivo correndo atráz de um gato preto. Pobre Lia, talvez fosse sofrer um pouco nesse verão.

Das cinco cabanas de "meus domínios", três já estavam ocupadas. Uma pela família do senhor Silvio, que era um homem engraçado, apesar da pose de rígido, a cabana mais proxima da dele estava com um bando de amigos, três rapazes e três moças, só de olhar para a cara de um deles já pensei na imagem exata para descrevê-los: encrenca! E a outra, a mais proxima de mim estava ocupada por aquela moça da cidade mais proxima que vem aqui todos os verões e fica sempre na mesma cabana. Toda vez ela me diz seu nome, mas eu me esqueço assim que ela passa pela porta, e não sai de lá até o verão acabar. É a única que me deixa pensativo, não tenho uma imagem física dela, ela sempre chega com um manto diferente, e o seu rosto está sempre encoberto por aquele longo cabelo castanho cacheado. Realmente, ela me instiga um pouco mais do que os outros, tirando o horário das refeições, ela raramente sai. Me pergunto se ela tem algum segredo como eu e não pode fazer o que eu faço durante todo o ano.